Adélia Prado me ensina pedagogia.
Diz ela: "Não quero faca nem queijo; quero é fome". O comer não
começa com o queijo. O comer começa na fome de comer queijo. Se não tenho fome
é inútil ter queijo. Mas se tenho fome de queijo e não tenho queijo, eu dou um jeito
de arranjar um queijo...
Quando vivi nos Estados Unidos,
minha família e eu visitávamos, vez por outra, uma parenta distante, nascida na
Alemanha. Seus hábitos germânicos eram rígidos e implacáveis.
Não admitia que uma criança se
recusasse a comer a comida que era servida. Meus dois filhos, meninos, movidos
pelo medo, comiam em silêncio. Mas eu me lembro de uma vez em que, voltando
para casa, foi preciso parar o carro para que vomitassem. Sem fome, o corpo
se recusa a comer. Forçado, ele
vomita.
Toda experiência de aprendizagem
se inicia com uma experiência afetiva. É a fome que põe em funcionamento o
aparelho pensador. Fome é afeto. O pensamento nasce do afeto, nasce da fome.
Não confundir afeto com beijinhos e carinhos. Afeto, do latim
"affetare", quer dizer "ir atrás". É o
movimento da alma na busca do objeto de sua fome. É o Eros platônico, a fome
que faz a alma voar em busca do fruto sonhado.
Eu era menino. Ao lado da pequena
casa onde morava, havia uma casa com um pomar enorme que eu devorava com os
olhos, olhando sobre o muro. Pois aconteceu que uma árvore cujos galhos
chegavam a dois metros do muro se cobriu de frutinhas que eu não conhecia.
Eram pequenas, redondas,
vermelhas, brilhantes. A simples visão daquelas frutinhas vermelhas provocou o
meu desejo. Eu queria comê-las. E foi então que, provocada pelo meu desejo,
minha máquina de pensar se pôs a funcionar. Anote isso: o pensamento é a ponte
que o corpo constrói a fim de chegar ao objeto do seu desejo.
Se eu não tivesse visto e
desejado as ditas frutinhas, minha máquina de pensar teria permanecido parada.
Imagine se a vizinha, ao ver os meus olhos desejantes sobre o muro, com dó de
mim, tivesse me dado um punhado das ditas frutinhas, as pitangas. Nesse caso,
também minha máquina de pensar não teria funcionado. Meu desejo teria se
realizado por meio de um atalho, sem que eu tivesse tido necessidade de pensar.
Anote isso também: se o desejo for satisfeito, a máquina de pensar não pensa.
Assim, realizando-se o desejo, o pensamento não acontece. A maneira mais fácil
de abortar o pensamento é realizando o desejo. Esse é o pecado de muitos pais e
professores que ensinam as respostas antes que tivesse havido perguntas.
Provocada pelo meu desejo, minha
máquina de pensar me fez uma primeira sugestão, criminosa. "Pule o muro à
noite e roube as pitangas." Furto, fruto, tão próximos... Sim, de fato era
uma solução racional. O furto me levaria ao fruto desejado. Mas havia um senão:
o medo. E se eu fosse pilhado no momento do meu furto? Assim, rejeitei o
pensamento criminoso, pelo seu perigo.
Mas o desejo continuou e minha
máquina de pensar tratou de encontrar outra solução: "Construa uma
maquineta de roubar pitangas". McLuhan nos ensinou que todos os meios
técnicos são extensões do corpo. Bicicletas são extensões das pernas, óculos
são extensões dos olhos, facas são extensões das unhas.
Uma maquineta de roubar pitangas
teria de ser uma extensão do braço. Um braço comprido, com cerca de dois
metros. Peguei um pedaço de bambu. Mas um braço comprido de bambu, sem uma mão,
seria inútil: as pitangas cairiam.
Achei uma lata de massa de
tomates vazia. Amarrei-a com um arame na ponta do bambu. E lhe fiz um dente,
que funcionasse como um dedo que segura a fruta. Feita a minha máquina, apanhei
todas as pitangas que quis e satisfiz meu desejo. Anote isso também:
conhecimentos são extensões do corpo para a realização do desejo.
Imagine agora se eu, mudando-me
para um apartamento no Rio de Janeiro, tivesse a ideia de ensinar ao menino meu
vizinho a arte de fabricar maquinetas de roubar pitangas. Ele me olharia com
desinteresse e pensaria que eu estava louco. No prédio, não havia pitangas para
serem roubadas. A cabeça não pensa aquilo que o coração não pede. E anote isso
também: conhecimentos que não são nascidos do desejo são como uma maravilhosa
cozinha na casa de um homem que sofre de anorexia. Homem sem fome: o fogão
nunca será aceso. O banquete nunca será servido.
Dizia Miguel de Unamuno:
"Saber por saber: isso é inumano..." A tarefa do professor é a mesma
da cozinheira: antes de dar faca e queijo ao aluno, provocar a fome... Se ele
tiver fome, mesmo que não haja queijo, ele acabará por fazer uma maquineta de
roubá-los. Toda tese acadêmica deveria ser isso: uma maquineta de roubar o
objeto que se deseja...
Rubem Alves
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