De fato, a
meu ver, não existe avaliação quantitativa. Avaliação, por ser avaliação, é
qualitativa. O termo avaliação provém de dois componentes latinos — “a” e
“valere” —, que juntos querem dizer “atribuir valor a alguma coisa”, ou seja,
atribuir qualidade a alguma coisa.
Há tempos
atrás, em meus escritos, defini avaliação como “um juízo de qualidade sobre
dados relevantes, para uma tomada de decisão”. Essa definição explicita os
elementos constitutivos de um processo de avaliação, ou seja, “um juízo de
qualidade” significa atribuir qualidade a alguma coisa. Aquilo a que atribuímos
qualidade são dados da realidade. No caso da aprendizagem, são dados do
desempenho do estudante na sua aprendizagem dos conteúdos; são dados da
realidade de sua aprendizagem. A depender das características que essa
aprendizagem, nós lhe atribuímos esta ou aquela qualidade. Assim, a um
estudante que manifeste um desempenho satisfatório em noventa por cento de suas
experiências e lhe atribuo uma qualidade de “satisfatório”, mas a um estudante
que atinge somente dez por cento das aprendizagens possíveis, eu lhe atribuo
uma qualidade de “insatisfatório”. Foram os dados da realidade do aprendido que
me permitiram fazer o juízo de qualidade ou a atribuir a essa experiência a tal
qualidade.
Os “dados
relevantes da realidade” sobre os quais nos atribuímos uma qualidade são dados
essenciais daquela realidade, tendo em vista o fim que estamos buscando. Para
avaliar a aprendizagem de um educando em adição com números inteiros, devo
coletar dados somente sobre isso. Seria irrelevante, para essa finalidade, eu
coletar dados sobre seu desempenho em fatoração, por exemplo. Uma coisa não tem
direta e imediatamente a ver com a outra. Neste momento específico,
interessa-me adição. Em outro poderá interessar-me fatoração, ou os dois
conteúdos ao mesmo tempo. Relevante é aquilo que é essencial para produzir o
juízo de qualidade, neste momento.
“Para uma
toma de decisão” expressa a idéia de que o ato de avaliar subsidia as decisões
de melhoria dos resultados. O ato de avaliar só faz sentido se ele tem esse
objetivo. Caso não desejemos melhorar o desempenho do estudante, não vale à
pena avaliá-lo. Isto do ponto de vista da avaliação, mas, do ponto de vista do
exame, sim, devido ao fato de que ao examinador não interessa melhorar o
resultado do desempenho do educando, mas sim em sua classificação a parir
daquilo que ele já conseguiu aprender. Interessa o que ele já conseguiu e não a
soma daquilo que ele já conseguiu com aquilo que ele pode conseguir ainda. Ao
contrário, o avaliador tem interesse em melhorar aquilo que ele já adquiriu. O
avaliador está voltado para o futuro.
Assim sendo,
o ato de avaliar trabalha com a qualidade atribuída por sobre um desempenho que
se manifesta com características quantitativas, ou seja, sobre um determinado
montante de aprendizagem atribui-se uma qualidade.
Com essa compreensão,
importa observar a confusão que ocorre quando dizemos “avaliação qualitativa” e
“avaliação quantitativa”. De fato, essa distinção não existe, na medida em que
avaliação é somente qualitativa, devido apresentar-se como atribuição de
qualidade a partir de determinadas características da realidade.
De onde vem
a confusão dessa terminologia? A Lei de Diretrizes da Educação Brasileira,
conhecida como 5692/71, trouxe em seu bojo a seguinte definição: “na aferição
do aproveitamento escolar, deve-se levar em consideração a qualidade sobre a
quantidade”. A partir dessa configuração, os educadores entenderam que a
qualidade se referia aos aspectos afetivos do educando e quantidade aos
aspectos cognitivos. Essa é a distorção.
De fato, o
legislador entendia por “qualidade” o aprofundamento e o refinamento da
aprendizagem. Por exemplo, dois estudantes aprendem um mesmo conteúdo, porém um
deles se destaca mais que outro na expressão da qualidade (aprofundamento,
refinamento) do aprendido; este terá uma qualidade superior em relação ao
outro.
No
cotidiano, ocorrem coisas assim: tenho dois pratos, ambos de feitos de
porcelana, porém um é grosseiro na sua forma e o outro é de fino acabamento..
Ambos são pratos, porém apresentam qualidades diferentes; um é mais refinado
que o outro. Na aprendizagem, ocorre a mesma coisa: a aprendizagem sobre uma
determinado conteúdo poderá ser mais (ou menos) refinada. A lei entendeu que
“predomínio da qualidade sobre a quantidade” refere-se ao aperfeiçoamento da
aprendizagem, ao refinamento, como vimos sinalizando, porém os educadores
entenderam de forma distorcida essa proposição da lei e assumiram “qualidade”
como o lado afetivo e, como “quantidade”, o lado cognitivo da conduta do
educando.
De fato,
também os atos afetivos são qualificados a partir da freqüência (quantidade)
com que essa conduta é praticada. Um sujeito que, em uma única ocasião,
manifesta-se respeitoso do outro, mas, em 99 outras, ele se manifesta
desrespeitoso, nós não lhe atribuímos a “qualidade” de respeitoso, pois que,
nas inúmeras vezes que foi observado, desrespeitou os colegas. O contrario
também é válido, ou seja, um educando que, em 100 ocasiões, por 99 vezes foi
respeitoso e, em uma única, foi desrespeitoso, atribuímos-lhe a qualidade de
“respeitoso”. Então, a qualidade é atribuída a partir de uma quantidade de
vezes que observamos aquela determinada conduta sendo praticada, seja ela
cognitiva, afetiva ou psicomotora.
Por outro
lado, importa observar que os atos cognitivos, praticados por um estudante, já
tem dentro de si um componente afetivo. Ninguém aprende bem matemática se não
tiver uma boa atração por ela. Ninguém aprende religião se não estiver
afetivamente aberto para ela. Ninguém aprende a gostar de feijão se não tiver a
aceitação de seu sabor, ninguém aprende a falar uma língua estrangeira se não
for motivado para ela. Assim sendo, o cognitivo exige um afetivo favorável a
ele. O componente afetivo é um portal, que permite ou não, o ingresso em
qualquer outra área da conduta humana. Caso a afetividade não seja positiva em
relação a alguma conduta, a aprendizagem não se dará satisfatoriamente.
Deste modo,
caso um estudante apresente um bom desempenho cognitivo em uma determinada
área, temos que admitir que sua afetividade é favorável, aberta a essa aprendizagem.
Na vida, tudo passa pelo crivo emocional dos nossos afetos; nós nada fazemos
sem o crivo afetivo.
Importa
observar, é claro, que poderemos qualificar atos que são predominantemente
afetivos. Os Planos Curriculares Nacionais definiram as aprendizagens em
cognitivas, procedimentais e atitudinais, As condutas atitudinais são
predominantemente afetivas, e elas podem ser qualificadas por elas mesmas,
ainda que o cognitivo também esteja predominantemente presente. Ninguém ama,
sem “saber amar”, ninguém “respeita o outro“ sem “saber respeitá-lo”. Os atos
afetivos também têm uma nuança cognitiva. O afeto também tem uma elaboração,
uma compreensão mental. Assim sendo, os nossos atos são permeados pelo
cognitivo, pelo afetivo e pelo psicomotor, ao mesmo tempo.
Em avaliação
da aprendizagem, necessitamos de aprender a olhar nosso educando como um todo
e, então, aprenderemos que a qualidade de um ato, cognitivo, afetivo ou
psicomotor, tem a ver com seu refinamento, com seu aprofundamento e foi isso
que o legislador quis nos dizer quando colocou na lei que, “na aferição do
aproveitamento escolar, deve levar em conta a qualidade sobre a quantidade”.
Cipriano
Luckesi
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