sexta-feira, 29 de junho de 2012

Avaliação


De fato, a meu ver, não existe avaliação quantitativa. Avaliação, por ser avaliação, é qualitativa. O termo avaliação provém de dois componentes latinos — “a” e “valere” —, que juntos querem dizer “atribuir valor a alguma coisa”, ou seja, atribuir qualidade a alguma coisa.
Há tempos atrás, em meus escritos, defini avaliação como “um juízo de qualidade sobre dados relevantes, para uma tomada de decisão”. Essa definição explicita os elementos constitutivos de um processo de avaliação, ou seja, “um juízo de qualidade” significa atribuir qualidade a alguma coisa. Aquilo a que atribuímos qualidade são dados da realidade. No caso da aprendizagem, são dados do desempenho do estudante na sua aprendizagem dos conteúdos; são dados da realidade de sua aprendizagem. A depender das características que essa aprendizagem, nós lhe atribuímos esta ou aquela qualidade. Assim, a um estudante que manifeste um desempenho satisfatório em noventa por cento de suas experiências e lhe atribuo uma qualidade de “satisfatório”, mas a um estudante que atinge somente dez por cento das aprendizagens possíveis, eu lhe atribuo uma qualidade de “insatisfatório”. Foram os dados da realidade do aprendido que me permitiram fazer o juízo de qualidade ou a atribuir a essa experiência a tal qualidade.
Os “dados relevantes da realidade” sobre os quais nos atribuímos uma qualidade são dados essenciais daquela realidade, tendo em vista o fim que estamos buscando. Para avaliar a aprendizagem de um educando em adição com números inteiros, devo coletar dados somente sobre isso. Seria irrelevante, para essa finalidade, eu coletar dados sobre seu desempenho em fatoração, por exemplo. Uma coisa não tem direta e imediatamente a ver com a outra. Neste momento específico, interessa-me adição. Em outro poderá interessar-me fatoração, ou os dois conteúdos ao mesmo tempo. Relevante é aquilo que é essencial para produzir o juízo de qualidade, neste momento.
“Para uma toma de decisão” expressa a idéia de que o ato de avaliar subsidia as decisões de melhoria dos resultados. O ato de avaliar só faz sentido se ele tem esse objetivo. Caso não desejemos melhorar o desempenho do estudante, não vale à pena avaliá-lo. Isto do ponto de vista da avaliação, mas, do ponto de vista do exame, sim, devido ao fato de que ao examinador não interessa melhorar o resultado do desempenho do educando, mas sim em sua classificação a parir daquilo que ele já conseguiu aprender. Interessa o que ele já conseguiu e não a soma daquilo que ele já conseguiu com aquilo que ele pode conseguir ainda. Ao contrário, o avaliador tem interesse em melhorar aquilo que ele já adquiriu. O avaliador está voltado para o futuro.
Assim sendo, o ato de avaliar trabalha com a qualidade atribuída por sobre um desempenho que se manifesta com características quantitativas, ou seja, sobre um determinado montante de aprendizagem atribui-se uma qualidade.
Com essa compreensão, importa observar a confusão que ocorre quando dizemos “avaliação qualitativa” e “avaliação quantitativa”. De fato, essa distinção não existe, na medida em que avaliação é somente qualitativa, devido apresentar-se como atribuição de qualidade a partir de determinadas características da realidade.
De onde vem a confusão dessa terminologia? A Lei de Diretrizes da Educação Brasileira, conhecida como 5692/71, trouxe em seu bojo a seguinte definição: “na aferição do aproveitamento escolar, deve-se levar em consideração a qualidade sobre a quantidade”. A partir dessa configuração, os educadores entenderam que a qualidade se referia aos aspectos afetivos do educando e quantidade aos aspectos cognitivos. Essa é a distorção.
De fato, o legislador entendia por “qualidade” o aprofundamento e o refinamento da aprendizagem. Por exemplo, dois estudantes aprendem um mesmo conteúdo, porém um deles se destaca mais que outro na expressão da qualidade (aprofundamento, refinamento) do aprendido; este terá uma qualidade superior em relação ao outro.
No cotidiano, ocorrem coisas assim: tenho dois pratos, ambos de feitos de porcelana, porém um é grosseiro na sua forma e o outro é de fino acabamento.. Ambos são pratos, porém apresentam qualidades diferentes; um é mais refinado que o outro. Na aprendizagem, ocorre a mesma coisa: a aprendizagem sobre uma determinado conteúdo poderá ser mais (ou menos) refinada. A lei entendeu que “predomínio da qualidade sobre a quantidade” refere-se ao aperfeiçoamento da aprendizagem, ao refinamento, como vimos sinalizando, porém os educadores entenderam de forma distorcida essa proposição da lei e assumiram “qualidade” como o lado afetivo e, como “quantidade”, o lado cognitivo da conduta do educando.
De fato, também os atos afetivos são qualificados a partir da freqüência (quantidade) com que essa conduta é praticada. Um sujeito que, em uma única ocasião, manifesta-se respeitoso do outro, mas, em 99 outras, ele se manifesta desrespeitoso, nós não lhe atribuímos a “qualidade” de respeitoso, pois que, nas inúmeras vezes que foi observado, desrespeitou os colegas. O contrario também é válido, ou seja, um educando que, em 100 ocasiões, por 99 vezes foi respeitoso e, em uma única, foi desrespeitoso, atribuímos-lhe a qualidade de “respeitoso”. Então, a qualidade é atribuída a partir de uma quantidade de vezes que observamos aquela determinada conduta sendo praticada, seja ela cognitiva, afetiva ou psicomotora.
Por outro lado, importa observar que os atos cognitivos, praticados por um estudante, já tem dentro de si um componente afetivo. Ninguém aprende bem matemática se não tiver uma boa atração por ela. Ninguém aprende religião se não estiver afetivamente aberto para ela. Ninguém aprende a gostar de feijão se não tiver a aceitação de seu sabor, ninguém aprende a falar uma língua estrangeira se não for motivado para ela. Assim sendo, o cognitivo exige um afetivo favorável a ele. O componente afetivo é um portal, que permite ou não, o ingresso em qualquer outra área da conduta humana. Caso a afetividade não seja positiva em relação a alguma conduta, a aprendizagem não se dará satisfatoriamente.
Deste modo, caso um estudante apresente um bom desempenho cognitivo em uma determinada área, temos que admitir que sua afetividade é favorável, aberta a essa aprendizagem. Na vida, tudo passa pelo crivo emocional dos nossos afetos; nós nada fazemos sem o crivo afetivo.
Importa observar, é claro, que poderemos qualificar atos que são predominantemente afetivos. Os Planos Curriculares Nacionais definiram as aprendizagens em cognitivas, procedimentais e atitudinais, As condutas atitudinais são predominantemente afetivas, e elas podem ser qualificadas por elas mesmas, ainda que o cognitivo também esteja predominantemente presente. Ninguém ama, sem “saber amar”, ninguém “respeita o outro“ sem “saber respeitá-lo”. Os atos afetivos também têm uma nuança cognitiva. O afeto também tem uma elaboração, uma compreensão mental. Assim sendo, os nossos atos são permeados pelo cognitivo, pelo afetivo e pelo psicomotor, ao mesmo tempo.
Em avaliação da aprendizagem, necessitamos de aprender a olhar nosso educando como um todo e, então, aprenderemos que a qualidade de um ato, cognitivo, afetivo ou psicomotor, tem a ver com seu refinamento, com seu aprofundamento e foi isso que o legislador quis nos dizer quando colocou na lei que, “na aferição do aproveitamento escolar, deve levar em conta a qualidade sobre a quantidade”.
Cipriano Luckesi

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